Linfornas cerebrais prirnários: urna revisao de 9 casos
Rui Rangel; António Paiva*; Aurea Canelhas*; Serafim Paranhos. Servi\=o de Neurocirurgia e Servi\=o de Anatomia Patológica* do Hospital Santo António. Porto. Portugal.
Resumo Os autores reveem 9 casos de Iinfomas cerebrais primários operados no Hospital de Santo António, entre 1985 e 1993. Todos os doentes foram submetidos a craniotomia e o material histológico foi estudado utilizando técnicas histoquímicas de colora'i;ao e técnicas imunocitoquímicas. Todos os casos foram diagnosticados como linfomas nao-Hodgkin de fenótipo B, oito de alto grau de malignidade e um de baixo grau (imunocitoma). Nenhum dos casos apresentava rela'i;ao com imunodeficiencia ou infec'i;ao por vírus Epstein-Barr. Palavras chave: Linfomas. Cérebro. Imunohistoquímica. Summary Nine cases of primary central nervous system lymphoma operated between 1985 and 1993 at the Hospital Santo António are analysed. The histhological material coHected by craniotomy in aH cases was studied by diferent staining and imunohisthological techniques. AH were B ceH non-Hodgkin's lymphoma with eight high grade tumors and one imunocitoma. No patient was imunologicaHy suppressed or had EpsteinBarr virus infection. KEY WORDS: Lymphoma. Brain. Imunohisthology.
Introdu'i;ao
o Sistema Nervoso Central (S.N.C.) pode ser local de envolvimento secundário por linfomas sistémicos ou ser sede de linfomas primários. Os linfomas primários sao tumores raros, constituindo menos de 1% das neoplasias intracranianas e cerca de 2% dos linfomas em gera1 8.6. O quadroclínico é dominado desde o início por sintomas do foro neurológico e o parénquima cerebral é, de longe, o local mais frequentemente atingido, essencialmente as regi6es mais profundas, como os ganglios da base e regi~es periventriculares. Ocasional-
mente podem ser atingidos os ventrículos, o tronco cerebral, o cerebelo e a espinal medula9• Quanto aos linfomas secundários sao relativamente comuns apenas nas fases tardias dum linfoma sistémico (6,3 a 29%)1.5 e o quadro clínico inicia-se habitualmente por sintomas extra-neurais. Além disso a localiza~ao das les6es é também geralmente diferente: leptomeninges e espa~os vasculares (76%), raízes nervosas (36%), parenquima do S.N.C. (31 %), dura-máter e espa~o epidural (14%)9. Portanto, quer os achados de ordem clínica quer a localiza~ao das les6es podem desde logo sugerir tratar-se de linfoma primitivo ou secundário. A apresenta~ao imagiológica mais comum dos linfomas cerebrais primários é a multifocal (20 a 44% consoante as séries)3.6, o que leva muitas vezes o neurorradiologista a prop6r como diagnóstico mais provável o de metástases. Nas imagens de tomografia axial computorizada sao les6es espontaneamente mais densas que o cérebro, com pouco edema circundante e que captam intensa e homogeniamente o con-' traste. V aria~6es na capt~ao de contraste podem ocorrer nos linfomas de doentes imuno-comprometidos, particularmente naqueles doentes submetidos a transplantes de orgaos. Aqui podem ser semelhantes a abcessos com área central de baixa densidade e capta~ao periférica de contraste". Estao também descritas formas infiltrativas difusas por vezes com imagem característica em «borboleta» (Figura 1), les6es ocupando espa~o de contorno bem definido (Figura 2) ou ainda linfomas em cérebro de aspecto normal. Nas imagens de Ressonancia magnética as les6es apresentam hipersinal quer em TI quer em T2 e nao sao específicas·. Material e métodos No período de 8 anos compreendido-eñtre 1985 e 1993 foram operados no Hospital de Santo António do Porto 9 casos de linfomas cerebrais primários. Fizemos urna revisao de todos eles utilizando material que tinha sido fixado em líquido de Bouin, processado e incluído em parafina e os cortes corados pela Hematoxilina-eosina, método de Giemsa, método de Gomori para as fibras de reticulina e, num dos casos, pelo P.A.S. 263
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Fig. 1.- lmagem de ressonáncia magnética mostrando duas lesoes tumorais profundas, uma das quais em forma de «borboleta» na regiiio dos cornos frontais dos ventrículos laterais, e outra posterior dentro do atrium ventricular direito. Foi realizado estudo imunocitoquímico em cortes obtidos dos mesmos blocos de parafina utilizando o método indirecto ABC (Dako). Os anticorpos utilizados foram: L.CA., L26, LNl, LN2, UCHU, proteína fibrilar glial acídica (P.F.G.A.) e, num dos casos, cadeia leve K e lambda. Resultados
Aspectos clínicos Encontramos urna preponderancia de indivíduos do sexo masculino relativamente aos do sexo feminino numa rela9ao de 3: 1, com início dos sintomas 1 semana a 1 ano antes do diagnóstico (média de 3,5 meses). As idades aquando do diagnóstico variaram entre os 47 e os 72 anos, com predomínio na 6" década (5 casos) e 7" década (3 casos). A doen9a manifestou-se inicialmente sempre por sinais e sintomas neurológicos, destacando-se os seguintes, 264
por ordem de frequencia: hemiparésia ou parésia direita e/ou esquerda (5 casos), cefaleias (4 casos), confusao mental e desorienta9ao temporo-espacial (4 casos), altera9ao do comportamento (3 casos), incontinencia esfincteriana (2 casos), sonolencia (l caso), altera9ao do estado de consciencia (l caso), vómitos (l caso), diplopia e hidrocefalia (l caso) e hipertensao intracraniana grave (l caso). Quanto alocaliza9ao todos eram profundos, muitas vezes periventriculares, 5 deles com padrao multifocal e outros 2 com lesao única ocupando espa90 e de contorno bem definido (Figura 2). Duas les6es tinham aspecto típico simétrico, uma delas em «asa de borboleta» (Figura 1), e outra com 10caliza9ao muito rara e pecuTíar, intraventricular simétrica mas sem qualquer conexao entre ambas as les6es dos atriuns ventriculares (Figura 3). A forma de apresenta9ao multifocal foi responsável pelo diagnóstico clínico de metástases como primeira hipótese em 5 dos 9 casos e como segunda hipótese noutro. Em 3 casos o diagnóstico de glioma foi considerado o mais provável. Em nenhum dos doentes se encontrou his-
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Fig. 2.- Linfoma cerebral primário de contornos bem defenidos. tória de imunodeficiencia congénita ou adquirida nem evidencia clínica de infec~ao pelo vírus de Epstein-Barr. Quanto a sobrevida, 5 dos doentes faleceram num intervalo compreendido entre 3 meses e 1 ano após o início dos sintomas, 2 dos restantes estao vivos, 1 deles com sintomas e em tratamento após poucos meses de acompalhamento, o outro sem sintomas ao cabo de 4 anos desde o início da sintomatologia, sendo o único em que o diagnóstico histológico é de linfoma de baixo grau de malignidade. Desconhece-se a evolu~ao nos re~tantes dois doentes. Aspectos anatomo-patológicos Os aspectos histológicos nos 9 casos observados incluíam algumas características gerais comuns: - Distribui~ao perivascular das células neoplásicas nos casos ou em áreas em que a densidade celular nao era suficientemente grande para ocupar todo o tecido, em «toalha». Nestes é, ainda assim, possível apreciar a distribui~ao perivascular nas zonas periféricas da neoplasia (Figura 4). - Padrao típico das fibras de reticulina, de forma concentrica em tomo dos vasos, descrito na literatura como semelhante aos «anéis concentricos de crescimento das árvores»1 (Figura 5).
- Presen~a de pequenos linfócitos acompanhantes. Após estudo imunohistoquírnico foi possível classificar todos eles de acordo com a classifica~ao de Kiel actualizada (1990). Após revisao verificamos que oito eram linfomas periféricos de células B, de alto grau de malignidade, 6 deles centroblásticos e 2 imunoblásticos. Um outro, localizado no interior dos ventrículos laterais, foi classificado como imunocitoma. Dentro dos centroblásticos 1 deles foi classificado como sub-tipo multilobado dada a sua riqueza de células tumorais de núcleo lobulado ou «em trevo» (mais de 10% - 20%) (Figura 6) e os outros 5 como sub-tipo monomórfico (mais de 60% das células tumorais eram centroblastos típicos). O tumor intraventicular, classificado como imunocitoma, era constituído por toalha de células pequenas, com evidente diferencia~ao plasmocitóide, p6r vezes com presen~a de corpos de Russel ou de Dutcher (Figura 7 e 8). Evidenciou-se monoclonalidade para cadeias leves K e demonstrou-se, também, presen~a de imunoglobulinas extracelulares. Também se observaram múltiplos ca1cosferitos e abundantes mastócitos.
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Fig. 3.- Linfoma cerebral primário de localizac;iio intraventricular bilateral, simétrica, sem aparente conexiio entre ambas as lesoes dos atriuns.
Discussao Os dados da nossa série sao semelhantes aos descritos na literatura em vários aspectos: - No que diz respeito a idade estao descritos casos em todos os escaloes etários havendo, contudo, um predomínio no adulto e pico na 6" década6,['. - É referida em todas as séries consultadas urna prevalencia em doentes do sexo masculino relativamente aos do sexo feminino numa relagao que ronda os 3: l 6,[,. - Os sintomas iniciam-se em média cerca de 2,5 meses antes do diagnóstico e o prognóstico é muito mau tendo contudo a radioterapia aumentado a esperanga de vida para 2 a 5 anos após o início dos sintomas6 • Salienta-se, na presente série, um caso com sobrevida de 4 anos, sem sintomatologia e com aparente cura clínica. - Os sinais e sintomas mais frequentemente encontrados distribuem-se predominantemente por tres grandes grupos: 1) relacionados com hipertensao intracraniana tais como cefaleias, naúseas e vómitos; 2) défices das fungoes corticais superiores tais como a demencia, manifestagoes psiquiátricas e alteragao do estado de consciencia; e 3) défices neurológicos incluindo grande variedade de alteragoes referentes aos nervos cranianos, forga muscular, sensibilidade e reflexos. Na nossa série verificou-se esta
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mesma distribui<;:ao e, dentro destes 3 grupos, um predomínio dos 2 últimos. - Quanto as características histológicas é actualmente considerado que os tipos celulares dos linfomas cerebrais primários sao identicos aos dos linfomas extraneurais [O e que, na maioria dos casos, sao linfomas periféricos de células B, de alto grau de malignidade, muitos deles imunoblásticos. Além disso existem aspectos que lhes sao muito próprios e que permitem distinguir estas neoplasias de quase todas as outras possibilidades diagnósticas: 1) a distribuigao perivascular das células neoplásicas (Figura 4); 2) um padrao típico das fibras de reticulina (Figura 5); 3) a presenga de pequenos linfócitos reactivos. Na bibliografia mais recente encontrou-se urna associagao frequente dos linfomas cerebrais primitivos com situagoes de imunodeficiencia nomeadamente e em particular com doentes portadores do vírus da SIDA ou doentes transplantados a fazer tratamento imuilOssí:tpressor9 • Esta associagao poderá justificar o aumento da incidencia desta patologia nos últimos anos. Existem também referencias a associagao com infecgao pelo vírus de Epstein-Barr. Quanto a histogénese, o uso de impregnagoes pelo carbonato de prata chamou a atengao de muitos autores para a micróglia como possível célula de origem destas neoplasias'. Urna vez que os linfócitos nao estao normalmente
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Fig. 4.- Destribuifiio em «manga» perivascular das células linfóides neoplásicasjk. (H.E. 4x)
Fig. 5.- Padriio típico das fibras de reticulina, em forma concentrica perivascular (Ret - 4x). presentes no parenquima do S.N.e. a única célula potencialmente neoplásica representativa do componente reticular do sistema linforeticular seria a micróglia metalofílica e seus percursores putativos, presente nestes tumores em quantidade superior a encontrada nos restantes tumores do S.N.e. 9 • Contudo, os linfomas cerebrais primitivos reflectem, em geral, o aspecto histológico dos linfomas B, nomeadamente a expressao monoclonal de imunoglobulinas. Dada a suposta existencia da micróglia como um macrófago latente, deveria originar neoplasias de histiócitos em vez de linfomas de células B. Além disso a metalofilia partilhada pelos linfomas cerebrais primitivos e pela micróglia também foi demonstrada nos linfomas sistémicos? Assim, parece pouco provável ser a micróglia a célula de origem do linfoma cerebral primitivo apesar da sua íntima relaºao com a neoplasia. Alguns autores colocam a hipótese de, pelo menos em alguns casos, os tumores resultarem da saída transluminal de células linfóides dos vasos sanguíneos cerebrais e sua subsequen~e transformaºao neoplásica9 •
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Fig. 6.- Unfoma centroblástico rico em células de núcleo polilobulado ou «em trevo» (H E - lOx).
Fig. 7.- Corpo de Russel (P.A.S. +, lOx)
Fig. 8.- Corpo de Dutchen (P.A.S. +, 40x) Em conclusao, os casos apresentados incluem aspectos importantes para o diagnóstico desta neoplasia, quase sempre citologicamente muito agressiva e com prognóstico ominoso apesar da sua radiossenssibilidade ter prolon267
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gado, nos últimos anos, a esperan\?a de vida. Os resultados desta série estaD em geral em conformidade com a revisao bibliográfica efectuada, corroborando a individualiza\?ao dos linfomas cerebrais primitivos justificada pelas suas particulares características clínicas e patológicas. Entre estes 9 casos salientamos um deles pela sua 10caliza\?ao bilateral nos atriuns ventriculares, formado por duas massas tumorais independentes (Fig. 3) que foram removidas em bloco com técnica microcirúrgica. Neste caso constatou-se na cirurgia que as les6es tinham apenas inser\?aO nos plexos coroideus o que a ser verdade -nao foi possível a confirma\?ao anatomopatológico- vem apoiar mais a hipótese de estes tumores resultarem da saída transluminal de células linfóides dos vasos sanguíneos -neste caso no plexo coroideu- com subsequente transforma\?aO neoplásica. Bibliografía 1. Bunn, P.A. Jr., Schein, P.S., Banks, P.M., De Vita, V.T. Jr.: Central nervous system complications in patients with diffuse histiocytic and undifferenciated lymphoma: leukaemia revisited. Blood 1976; 47: 3. 2. Burger, P.C., Vogel, ES.: Surgical Pathology of the Nervous System and its Coverings, 2nd ed. New York; John Wiley and Sons, 1982; 367-378. 3. Burstein, S.D., Kernohan, J.W., Uihlein, A.: Neoplasms of the reticuloendothelial system of the brainj. Cancer 1963; 16: 289-305. 4. Brant-Zawadski, M., Davis, P.L., Crooks, L.E., et al.: NMR demonstration of cerebral abnorrnalities - comparison with CT. Am. J. Neuroradiol. 1983; 4: 117-124.
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